Ócio
Columnist on the online platform Ócio.
Type
Writing and Editorial
Info
location: Portugal
year: 2017
authorship: Tomé Capa


text 1 . May 2016
O limbo
Significado de trabalho: do latim tripaliu; é a denominação de instrumento de tortura formado por três (tri) paus (paliu), que era usado para os cavalos que não se deixavam ferrar. Dessa forma, na sua origem, trabalhar significa ser torturado.
Escrevo para o Ócio pela primeira vez e sendo a minha crónica de tema livre não poderia deixar de dar a conhecer os meus primeiros pensamentos nesta revista servindo-me do conceito que lhe dá nome – ócio – e aquilo que mais se relaciona com ele, o não ócio, portanto, o trabalho.
Pareceu-me este assunto pertinente não só pelo nome e motivo da revista mas porque de facto é algo que tem sido constante nas minhas reflexões e questões existenciais nos últimos tempos. Trabalhar. Porque raio afinal trabalhamos nós?
Para vos enquadrar, sou novo cá, 26 anos de vida, pouquíssimos de labuta, abundantes de ócio – mas alto, não se enganem a meu respeito, sou apaixonado pelo que me motiva, um louco – verão mais à frente. Estudei, como lhe chamaria o meu pai, um dos cursos clássicos – arquitectura, visto antigamente, pelo que me soa, como um curso e profissão nobre e agora, cada vez mais, desencadeando faces contraídas e onomatopeias pregueadas, aquando da resposta a: o que é que fazes da vida?
Preferia não aprofundar muito o meu descontentamento e protesto contra a falta de emprego jovem e assuntos que o relacionam, pelo menos da forma que já me cansa saber.
Gostaria antes de introduzir um tema que me suscita muitas questões e que receio ser o problema e a solução desta reflexão. Refiro-me a um período espácio-temporal: chamo a este período O Limbo.
O Limbo é um período de vida ou não vida porque na verdade não se existe, nem para as finanças (1).
No Limbo as árvores frutos não dão nem caducas são, o sol brilha mas ataca a vista proporcionando aos olhos semicerrados um desconforto que faz rugas, os amigos são só colegas e os actos apenas recordados amanhã.
O Limbo é um período no espaço e no tempo perdido entre o céu e o inferno, entre o primeiro e o último ano, que não deixa viver; talvez sobreviver.
Muitos, tal como eu, aproveitam tal momento, tentando-lhe dar sentido, viajando, voluntariando-se (muito, que é bom para o curriculum) ou estando mais tempo com os avós, mas sendo sempre miudinhos nervosos.
No Limbo nem se trabalha nem se aquece porque uma entidade superior lá do Além força a busca de emprego. Mas está mesmo foda como a Bossa Nova para o encontrar, então curte-se; mas não se pode; atenção, dá náuseas apenas quando se tenta, então volta-se à procura mas continua a não haver… “Passo a explicar: estamos desempregados (alguns de nós, outros entram às 9 e saem às 29, certas vezes por 500, outras vezes a zeros – ah, é para o curriculum), procuramos trabalho mas não há, continuamos à procura e continua a não haver. Temos tempo e pensamos em dedicá-lo (…)” ao Ócio “(…) Hey, mas isso é secundário, primeiro temos que arranjar trabalho, então continuamos à procura mas continua a não haver.” (1)
Isto é o Limbo: o período da vida em que devíamos ser felizes mas não somos. Mas talvez devêssemos. Assim, o tripaliu talvez passasse a ser um instrumento ocioso.
A verdade é que o grande problema do Limbo é a pressão que o Além nos põe em cima das costas. Já não nos falta o mortífero vírus da crise que infecta tudo o que toca e ainda temos que lidar com espiritismos?
Devia ter-se uma outra ideia sobre este período – e estou a tentar ser positivo! Investir por paixão nas nossas paixões, não porque nos dizem: “aceita que é melhor que estar parado”.
O Limbo deveria ser aquele momento que não tivemos se não tivéssemos o que temos agora, mas temo-lo, por isso temos que o aproveitar.
(1) Este ano, aos meus pais que forçosamente me vão sustentando quando me encontro à Orla, não lhes foi permitido colocar as despesas que têm comigo no IRS porque já tenho 26 anos. Parece que para o nosso governo eu já deveria ter juízo, trabalho, casado e com filhos e não andar a gastar o dinheiro dos meus pobres pais. Ai ai ai, o que ando eu a fazer… – Vai mas é trabalhar mandrião.
1 CAPA, Tomé, Plica #5, 2015
text 2 . June 2016
João e António
Sou do norte (Braga) e vivo no sul (Lisboa).
É (agora) uma vez o João e o António – o João, de cabelos encaracolados não deixa nunca o seu carneiro para trás, transportando-o com carinho, o António, desde cedo alternativo de pente, mas puro como um lírio.
São ambos bons rapazes e os peixes querem-lhes muito; por isso mesmo, por serem bons – faz sentido. Uns Santos, mas distintos com certeza. Têm os dois, personalidades diferentes embora pertençam ambos ao Clube do Bem, lá do Ceará.
São líderes espirituais e mais dos ditos peixes, e acabam, pelo mais, por efectivamente os liderar, controlando cada gesto, a memória de 2 segundos, o horário da ração; começando estes a verem a sua própria imagem reflectida tal como Narciso, sem perceberem e sem se quer se interrogarem porquê.
Estes peixes são de aquário, aparentemente fáceis de manejar, mas, vê lá, se colocas um d`Adão e outro d`Eva no globo de vidro, estes multiplicam-se e acabam por o encher. Muitas cabeças (de 2 segundos – 2 X 7000000000 = 140000000000 segundos), num espaço tão pequeno, pode, no limite, resultar em 140000000000 opiniões (como esta mesmo que vos conto), e isso poderá, por sua vez, gerar conflitos e discussões – a maioria das vezes ridiculamente desnecessárias, pois são opiniões sem poder de mudança, tipo futebol; ou porque o desespero de um futuro igual a hoje leva à criação de jogos mentais.
A somar às suas distintas personalidades, que dividem, desde logo, os peixes em dois grandes grupos, os dois rapazes encontram-se hoje em dia geograficamente separados. Um é do norte, outro é do sul.
Claramente, o espaço geográfico, por existir, cria diferenças a vários níveis entre os cardumes: pelo clima e temperatura das águas, pelo acesso, por tradições que foram criadas a partir da matéria-prima e que agora criam elas mesmas outras tradições… e por tudo isso é normal que esta separação aconteça.
Em suma, os peixes das águas do norte, que seguem João, são diferentes dos peixes do sul, que seguem António.
As diferenças levam à pergunta: mas qual o melhor desses Populares?
Ainda com diferenças, encontram-se todos os peixes, na mesma bolha e as águas, apesar das marés, correntes e turbilhões que os separam, são uma massa só, que rodopeia no aquário terrestre.
Afinal, as Sardinhas são sempre as mesmas nos dois polos (e as farturas e as bifanas, e os carrinhos de choque, e o Quim Barreiros e toda a parolada junta) – o peixe quer é festa, sem pensar, não importa se é no norte ou no sul.
Qual vencerá no final? Eu diria o João (por causa do martelo), mas é só uma opinião; e eu sou só mais um peixe de memória curta.
text 4 . December 2016
1m2
Na Cidade de Cartão todos têm direito a habitação.
Com muitíssimo gosto e desenho, tudo é feito à la cart de papel ão: as casas, as escolas, os hospitais, os grandes e pequenos prédios, e só existe uma unidade de medida – 1m2. Tudo mede 1m2, menos as pessoas, que podem variar.
E podendo variar de vez em vez, todos são felizes porque não chove, o vento não sopra, não faz frio nem calor, há paz e as casas não têm portas.
Não há sem-abrigos. Todos com-abrigo. Porque assim deve ser.
A estrutura urbana da cidade é regida por uma malha ortogonal com uma métrica de 1mx1m que se estende pelo horizonte, acompanhando as ondas da terra. A partir do padrão métrico, compõem-se cheios e vazios – as casas e restantes construções que definem os cheios e as ruas e praças, que geralmente são criadas a partir da subtracção dos não vazios.
O espaço público é de todos que é vazio tal como o cheio que é de todos mas de cada um, concebendo a mesma importância às duas partes.
Tanto é, que o mobiliário (camas, armários, cacifos…) tanto está dentro como está fora e é de quem o usar, de quem tiver consciência patrimonial e noção de reaproveitamento, de valor pelas coisas que são precisas, precisas unicamente, pelo direito que temos de o fazer, pela possibilidade, pela carência do essencial e do não tanto que nos faz mais felizes.
Se há electricidade na Cidade, é pouca e à gente não lhe importa. Há maior gosto pela comunicação directa, pessoal, com os restantes habitantes e há quem fale consigo mesmo, em alta voz, sem vergonha, pois esta não vive na Cidade. Não há que a ter, se houver já a pensamos, não vale a pena produzi-la.
São boas-as-pessoas da Cidade de Cartão.
No outro dia, enquanto passeava à noite, vi um homem numa casa que não tinha tecto não tinha nada – mas era feliz. Estava a ler… e o seu cão, à porta, dormia.
Aqui só se trabalha para si, que é melhor. Vive-se. Só fazem rotina os rotineiros, porque não morrem no conforto mas talvez isso os faça matar, sabe-se lá.
Eu cá estou a morrer. Tenho uma rotina nesta cidade porque a minha casa de betão não é de cartão.
text 6 . February 2017
31 Gramas
Começo a escrever e “ (…) As sete mulheres do Minho (…) ” a cantarolar – e ora como o luto se põe a funcionar: tudo à nossa volta nos faz lembrar. Saudade saudade, ela também a apertar.
Recordou-se há pouco um vídeo, era eu pequeno num natal de família, havia comida, vinho, netos e cantigas, e no fim, um chá quente de Tília.
No vídeo canta-se “ (…) Essa mulher lá do Minho (…) ”. E cantar cantava ele que não o deixava sozinho. Cantar fazia-o mais sentir, chorar e mais por rir.
A morte sempre me fascinou.
Por ser tão misteriosa, lá no seu canto, sem falar com ninguém.
Parece que sabemos de tudo, menos da morte.
Este texto apresenta-se como interrogações que fazem da morte esse mistério sensual.
Vivi já algumas mortes, não as minhas, outras, mas a última será sempre a mais recente, e esta a que me faz pensar mais, talvez pela possibilidade de me faltarem sensivelmente 2/3 da vida para viver, se tudo correr conforme a dita normalidade, ou então por já ter vivido 1/3 dela.
É estranha a morte e inexplicável também. Não questiono tanto o envelhecimento. Que apesar de esquisito ainda se consegue discernir, de uma forma genérica, pela ciência e pela lógica.
Questiono a extinção, a separação de alguém do seu próprio corpo que lhe dava forma, e do nascimento, do acto de aparecer espontaneamente e desaparecer igualmente, no final.
É assustador ver um corpo que costumava ser uma parte tão importante de uma personalidade, deixar de o ser, gradualmente, desligando-se, pouco a pouco, até a deixar por completo.
É separado o corpo do ser – mas sem corpo não há viver.
É logo imprescindível a sua formalização. É o corpo, em matéria, composto por órgãos e células que nos faz ser, e fá-lo sem estar ligado à ficha… não é fascinante? Fá-lo sozinho, é um mecanismo independente que brota do nada, dura um período, apodrece e pára, para sempre. É ele que nos mata esse cabrão magnífico.
Mas é assim tão importante que não conseguimos viver sem ele? Há uns que vivem só com metade dele, ou mesmo quase nada. Acho que nesses casos já são de facto maiores que ele – mas que adianta? Estão bloqueados.
Pergunto-me o que realmente acontece à pessoa quando solta o corpo.
É difícil de imaginar que um dia não vou pensar mais. Que vou deixar de ser. Que o meu próprio acto de pensar e escrever vai desaparecer como uma gotícula que evapora e deixamos de ver. Mas aí nada se perde ou se cria, tudo se transforma. E nós? Também nos transformamos?
No nosso caso, a molécula vai mas a gotícula fica. Enterrámo-la ou queimámo-la – Porra, que retrógrada! Que macabro!
O acto fúnebre é algo igualmente estranho. Talvez só o seja por não estar habituado, não sei. Talvez se vulgarize e se torne algo até divertido, vamos ver…
Na verdade, este existe com um sentido, teoricamente, para pararmos e pensarmos na pessoa que não vamos voltar a ver ou a sentir perto de nós e consciencializar-nos disso. Fazer luto*
A estranheza de um funeral numa lista de 31 gramas:
(um próximo artigo falará sobre listas e a organização através delas)
1º – Ver aquela pessoa, ou o corpo dela dentro de uma caixa normalmente associada à tristeza e ela não estar lá e não saber para onde foi;
2º – Ver pessoas que já não via desde o último caixão aberto;
3º – Rir;
4º – Chorar;
5º – Ver pessoas que não imaginava a rir;
6º – Ver pessoas que não imaginava a chorar;
7º – Ver o primo da tia da sobrinha que tem o braço apoiado ao caixão, sem se aperceber, e ouvi-lo a falar sobre camelos que tropeçam em gomas coloridas;
8º – Reparar nos caixilhos, nas luminárias e nas ferragens da porta de correr;
9º – Querer chorar e ter vergonha;
10º – Querer chorar e não saber ao certo porquê;
11º – Querer chorar e saber porquê;
12º – Insultar mentalmente o Padre e a Igreja pela merda que são;
13º – Querer largar uma risada de bochechas e cuspe ao ouvir o acólito a desafinar mas ter meia igreja a chorar;
14º – Pensar em coelhinhos fofinhos mortos para chorar também;
15º – Não resultando, lembrar-me da verdadeira razão de estar ali e parar;
16º – Querer chorar e não poder;
17º – Pensar na minha morte;
18º – Ter curiosidade de como seria o meu funeral – quem estaria presente? Que diriam? Serei eu egocêntrico por pensar nisso?;
19º – Suplicar por não fazerem o meu funeral numa igreja porque poderia perfeitamente morrer de tédio;
20º – Imaginar-me a fazer a coisa mais estranha possível no momento menos apropriado possível;
21º – Sentir um conforto gigante num abraço sentido;
22º – Empatia;
23º – Sentir pura felicidade e aconchego na família unida, nuns para os outros, fortalecendo os laços;
24º – Tristeza pela tristeza dos outros;
25º – Chorar pelo choro dos outros;
26º – Chorar porque não o vou voltar ver;
27º – Perceber que não o volto a levar a casa de carro;
28º – Tristeza por ter vendido o carro que me ofereceu;
29º – Lembrar tantos bonitos pormenores, desde o chamamento “ÔôÔô”, ou ou “morde, morde”, até ao amarelado sorriso carinhoso;
30º – Arrependimento de coisas que fiz ou que não fiz;
31º – Chorar porque o meu avô morreu.
Esta é a minha experiência.
*Pensei no outro dia no luto como um outro tipo de separação (mas separação apenas, cada um contínua o seu percurso), como o divórcio ou o término de um namoro mais sério. Daqueles que nunca mais nos voltamos a ver ou a falar e nem sei se está viva ou se está morta…pois, é isso mesmo.