Ócio

Chronicler on the online platform Ócio

 

location: Portugal
year: 2017
author: Tomé Capa

 


 

Article #1 | O Limbo

Significado de trabalho: do latim tripaliu; é a denominação de instrumento de tortura formado por três (tri) paus (paliu), que era usado para os cavalos que não se deixavam ferrar. Dessa forma, na sua origem, trabalhar significa ser torturado.


Escrevo para o Ócio pela primeira vez e sendo a minha crónica de tema livre não poderia deixar de dar a conhecer os meus primeiros pensamentos nesta revista servindo-me do conceito que lhe dá nome – ócio – e aquilo que mais se relaciona com ele, o não ócio, portanto, o trabalho.
Pareceu-me este assunto pertinente não só pelo nome e motivo da revista mas porque de facto é algo que tem sido constante nas minhas reflexões e questões existenciais nos últimos tempos. Trabalhar. Porque raio afinal trabalhamos nós?
Para vos enquadrar, sou novo cá, 26 anos de vida, pouquíssimos de labuta, abundantes de ócio – mas alto, não se enganem a meu respeito, sou apaixonado pelo que me motiva, um louco - verão mais à frente. Estudei, como lhe chamaria o meu pai, um dos cursos clássicos – arquitectura, visto antigamente, pelo que me soa, como um curso e profissão nobre e agora, cada vez mais, desencadeando faces contraídas e onomatopeias pregueadas, aquando da resposta a: o que é que fazes da vida?
Preferia não aprofundar muito o meu descontentamento e protesto contra a falta de emprego jovem e assuntos que o relacionam, pelo menos da forma que já me cansa saber.
Gostaria antes de introduzir um tema que me suscita muitas questões e que receio ser o problema e a solução desta reflexão. Refiro-me a um período espácio-temporal: chamo a este período O Limbo.
O Limbo é um período de vida ou não vida porque na verdade não se existe, nem para as finanças (1).
No Limbo as árvores frutos não dão nem caducas são, o sol brilha mas ataca a vista proporcionando aos olhos semicerrados um desconforto que faz rugas, os amigos são só colegas e os actos apenas recordados amanhã.
O Limbo é um período no espaço e no tempo perdido entre o céu e o inferno, entre o primeiro e o último ano, que não deixa viver; talvez sobreviver.
Muitos, tal como eu, aproveitam tal momento, tentando-lhe dar sentido, viajando, voluntariando-se (muito, que é bom para o curriculum) ou estando mais tempo com os avós, mas sendo sempre miudinhos nervosos.
No Limbo nem se trabalha nem se aquece porque uma entidade superior lá do Além força a busca de emprego. Mas está mesmo foda como a Bossa Nova para o encontrar, então curte-se; mas não se pode; atenção, dá náuseas apenas quando se tenta, então volta-se à procura mas continua a não haver… “Passo a explicar: estamos desempregados (alguns de nós, outros entram às 9 e saem às 29, certas vezes por 500, outras vezes a zeros – ah, é para o curriculum), procuramos trabalho mas não há, continuamos à procura e continua a não haver. Temos tempo e pensamos em dedicá-lo (…)” ao Ócio “(…) Hey, mas isso é secundário, primeiro temos que arranjar trabalho, então continuamos à procura mas continua a não haver.” 1

Isto é o Limbo: o período da vida em que devíamos ser felizes mas não somos. Mas talvez devêssemos. Assim, o tripaliu talvez passasse a ser um instrumento ocioso.
A verdade é que o grande problema do Limbo é a pressão que o Além nos põe em cima das costas. Já não nos falta o mortífero vírus da crise que infecta tudo o que toca e ainda temos que lidar com espiritismos?
Devia ter-se uma outra ideia sobre este período - e estou a tentar ser positivo! Investir por paixão nas nossas paixões, não porque nos dizem: “aceita que é melhor que estar parado”.
O Limbo deveria ser aquele momento que não tivemos se não tivéssemos o que temos agora, mas temo-lo, por isso temos que o aproveitar.


(1) Este ano, aos meus pais que forçosamente me vão sustentando quando me encontro à Orla, não lhes foi permitido colocar as despesas que têm comigo no IRS porque já tenho 26 anos. Parece que para o nosso governo eu já deveria ter juízo, trabalho, casado e com filhos e não andar a gastar o dinheiro dos meus pobres pais. Ai ai ai, o que ando eu a fazer… - Vai mas é trabalhar mandrião.

1 CAPA, Tomé, Plica #5, 2015


 

Article #4 | 1m2

Na Cidade de Cartão todos têm direito a habitação.
Com muitíssimo gosto e desenho, tudo é feito à la cart de papel ão: as casas, as escolas, os hospitais, os grandes e pequenos prédios e só existe uma unidade de medida – 1m2. Tudo mede 1m2, menos as pessoas, que podem variar.
E podendo variar de vez em vez, todos são felizes porque não chove, o vento não sopra, não faz frio nem calor, há paz e as casas não têm portas.
Não há sem-abrigos. Todos com-abrigo. Porque assim deve ser.
A estrutura urbana da cidade é regida por uma malha ortogonal com uma métrica de 1mx1m que se estende pelo horizonte, acompanhando as ondas da terra. A partir do padrão métrico, compõem-se cheios e vazios – as casas e restantes construções que definem os cheios e as ruas e praças, que geralmente são criadas a partir da subtracção dos não vazios.
O espaço público é de todos que é vazio tal como o cheio que é de todos mas de cada um, concebendo a mesma importância às duas partes.
Tanto é, que o mobiliário (camas, armários, cacifos…) tanto está dentro como está fora e é de quem o usar, de quem tiver consciência patrimonial e noção de reaproveitamento, de valor pelas coisas que são precisas, precisas unicamente, pelo direito que temos de o fazer, pela possibilidade, pela carência do essencial e do não tanto que nos faz mais felizes.
Se há electricidade na Cidade, é pouca e à gente não lhe importa. Há maior gosto pela comunicação directa, pessoal, com os restantes habitantes e há quem fale consigo mesmo, em alta voz, sem vergonha, pois esta não vive na Cidade. Não há que a ter, se houver já a pensamos, não vale a pena produzi-la.
São boas-as-pessoas na Cidade de Cartão.
No outro dia, enquanto passeava à noite, vi um homem numa casa que não tinha tecto não tinha nada – mas era feliz. Estava a ler… e o seu cão, à porta, dormia.
Aqui só se trabalha para si, que é melhor. Vive-se. Só fazem rotina os rotineiros, porque não morrem no conforto mas talvez isso os faça matar, sabe-se lá.

Eu cá estou a morrer. Tenho uma rotina nesta cidade porque a minha casa de betão não é de cartão.


 

Article #5 | À espera que o céu lhe caia em cima da cabeça

“Sometimes I think I have felt everything I`m ever gonna feel. And from here on out, I`m not gonna feel anything new. Just lesser versions of what I´ve already felt.” Theodore – Her

O que o mantém vivo, mecanicamente falando, é o esforço e preocupação constante de manter o ar dentro de si, num inspiro único, do início e para sempre.
O corpo que transporta, de vestes e peles, tal como o conhecemos, não tem mais nada lá dentro, não tem recheio, sustenta-se do ar que o preenche, ansioso para ser expirado.
Ombros contraídos, bochechas cheias, olhos cansados e sem brilho algum, desmotivado, interrogando-se se valerá a pena.
Se o libertar, ao ar, é porque não acredita num motivo, e murcha.
O motivo terá que ser uma experiência completamente nova, desconhecida para ele, fora da sua zona de conforto, que o faça sentir perdido num lugar e tempo, com medo mas confiante e forte, vivo de tal forma que lhe faça novamente os olhos brilhar.
Ou isso, ou entende o que lhe espera, aceita e satisfaz-se com réplicas menos potentes daquilo que já viveu. Mas isso é tão aterrador que ainda lhe tira mais o fôlego.
Para já, encontra-se à espera que o céu lhe caia em cima da cabeça, à procura de uma explicação para o presente e com esperança naquilo que o futuro lhe possa trazer.
Ou isso, ou realmente compreende que não haverá de facto mais nada a não ser o passado no presente.


 

Article #6 | 31 gramas

Começo a escrever e “ (…) As sete mulheres do Minho (…) ” a cantarolar – e ora como o luto se põe a funcionar: tudo à nossa volta nos faz lembrar. Saudade saudade, ela também a apertar.
Recordou-se há pouco um vídeo, era eu pequeno num natal de família, havia comida, vinho, netos e cantigas, e no fim, um chá quente de Tília.
No vídeo canta-se “ (…) Essa mulher lá do Minho (…) ”. E cantar cantava ele que não o deixava sozinho. Cantar fazia-o mais sentir, chorar e mais por rir.

A morte sempre me fascinou.
Por ser tão misteriosa, lá no seu canto, sem falar com ninguém.
Parece que sabemos de tudo, menos da morte.

Este texto apresenta-se como interrogações que fazem da morte esse mistério sensual.

Vivi já algumas mortes, não as minhas, outras, mas a última será sempre a mais recente, e esta a que me faz pensar mais, talvez pela possibilidade de me faltarem sensivelmente 2/3 da vida para viver, se tudo correr conforme a dita normalidade, ou então por já ter vivido 1/3 dela.
É estranha a morte e inexplicável também. Não questiono tanto o envelhecimento. Que apesar de esquisito ainda se consegue discernir, de uma forma genérica, pela ciência e pela lógica.
Questiono a extinção, a separação de alguém do seu próprio corpo que lhe dava forma, e do nascimento, do acto de aparecer espontaneamente e desaparecer igualmente, no final.
É assustador ver um corpo que costumava ser uma parte tão importante de uma personalidade, deixar de o ser, gradualmente, desligando-se, pouco a pouco, até a deixar por completo.
É separado o corpo do ser - mas sem corpo não há viver.
É logo imprescindível a sua formalização. É o corpo, em matéria, composto por órgãos e células que nos faz ser, e fá-lo sem estar ligado à ficha… não é fascinante? Fá-lo sozinho, é um mecanismo independente que brota do nada, dura um período, apodrece e pára, para sempre. É ele que nos mata esse cabrão magnífico.
Mas é assim tão importante que não conseguimos viver sem ele? Há uns que vivem só com metade dele, ou mesmo quase nada. Acho que nesses casos já são de facto maiores que ele – mas que adianta? Estão bloqueados.
Pergunto-me o que realmente acontece à pessoa quando solta o corpo.
É difícil de imaginar que um dia não vou pensar mais. Que vou deixar de ser. Que o meu próprio acto de pensar e escrever vai desaparecer como uma gotícula que evapora e deixamos de ver. Mas aí nada se perde ou se cria, tudo se transforma. E nós? Também nos transformamos?
No nosso caso, a molécula vai mas a gotícula fica. Enterrámo-la ou queimámo-la - Porra, que retrógrada! Que macabro!
O acto fúnebre é algo igualmente estranho. Talvez só o seja por não estar habituado, não sei. Talvez se vulgarize e se torne algo até divertido, vamos ver…
Na verdade, este existe com um sentido, teoricamente, para pararmos e pensarmos na pessoa que não vamos voltar a ver ou a sentir perto de nós e consciencializar-nos disso. Fazer luto.

A estranheza de um funeral numa lista de 31 gramas:

1º – Ver aquela pessoa, ou o corpo dela dentro de uma caixa normalmente associada à tristeza e ela não estar lá e não saber para onde foi;
2º – Ver pessoas que já não via desde o último caixão aberto;
3º – Rir;
4º – Chorar;
5º – Ver pessoas que não imaginava a rir;
6º – Ver pessoas que não imaginava a chorar;
7º – Ver o primo da tia da sobrinha que tem o braço apoiado ao caixão, sem se aperceber, e ouvi-lo a falar sobre camelos que tropeçam em gomas coloridas;
8º – Reparar nos caixilhos, nas luminárias e nas ferragens da porta de correr;
9º – Querer chorar e ter vergonha;
10º – Querer chorar e não saber ao certo porquê;
11º – Querer chorar e saber porquê;
12º – Insultar mentalmente o Padre e a Igreja pela merda que são;
13º – Querer largar uma risada de bochechas e cuspe ao ouvir o acólito a desafinar mas ter meia igreja a chorar;
14º – Pensar em coelhinhos fofinhos mortos para chorar também;
15º – Não resultando, lembrar-me da verdadeira razão de estar ali e parar;
16º – Querer chorar e não poder;
17º – Pensar na minha morte;
18º – Ter curiosidade de como seria o meu funeral – quem estaria presente? Que diriam? Serei eu egocêntrico por pensar nisso?;
19º - Suplicar por não fazerem o meu funeral numa igreja porque poderia perfeitamente morrer de tédio;
20º – Imaginar-me a fazer a coisa mais estranha possível no momento menos apropriado possível;
21º – Sentir um conforto gigante num abraço sentido;
22º – Empatia;
23º – Sentir pura felicidade e aconchego na família unida, nuns para os outros, fortalecendo os laços;
24º – Tristeza pela tristeza dos outros;
25º – Chorar pelo choro dos outros;
26º – Chorar porque não o vou voltar ver;
27º – Perceber que não o volto a levar a casa de carro;
28º – Tristeza por ter vendido o carro que me ofereceu;
29º – Lembrar tantos bonitos pormenores, desde o chamamento “ÔôÔô”, ou ou “morde, morde”, até ao amarelado sorriso carinhoso;
30º – Arrependimento de coisas que fiz ou que não fiz;
31º – Chorar porque o meu avô morreu.